sexta-feira, 15 de abril de 2011

por Arsênio Meira Júnior
Augusto dos Anjos, aos 17 anos, escreveu o soneto Versos Íntimos; nele há um verso que rompeu as barreiras do convencional e incorporou-se no imaginário popular, tornando-e parte indelével da língua corrente do povo (esse soneto eu e a torcida do Flamengo sabemos de cor e salteado):


“Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija.”

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (Cruz do Espírito Santo, Paraíba, 20 de  abril de 1884 – Leopoldina, Minas Gerais, 12 de novembro de 1914), foi um inusitado poeta paraibano, identificado muitas vezes – de maneira equivocada, a meu ver como simbolista ou parnasiano; por outro lado houve quem, como o poeta Ferreira Gullar, o enxergasse como pré-moderno, com instantes de modernismo puro.
É festejado como um dos poetas mais estranhos do seu tempo, e até hoje sua obra é admirada (e causa espanto) tanto em leitores comuns quanto em diversos críticos literários de nomeada.
Para mim, Augusto dos Anjos não pertence a nenhuma escola literária. Ele é inclassificável, sob o ponto de vista cronológico ou geracional. No entanto, os mestres que lecionam Literatura o classificam classificação como “pré-moderno”.
Ora, como catalogar um poeta que, em plena belle epoque, escreveu para o escândalo dos saraus, dos espartilhos, dos pincenês dourados e das bengalas benfazejas, esse “singelo” apelo:
Budismo moderno
Tome, Dr., esta tesoura, e… corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!”
Augusto dedicou-se ao magistério, transferindo-se para o Rio de Janeiro, após diatribes em sua terra natal (pra variar, saiu como poeta levando pedradas da Paraíba, e em meio a conflitos familiares) onde foi professor em vários estabelecimentos de ensino.
Faleceu em 30 de outubro de 1914, as 4 horas da madrugada, em Leopoldina, Minas Gerais, onde era diretor de um grupo escolar. A causa de sua morte foi a pneumonia. Durante sua vida, publicou vários poemas em periódicos, o primeiro, Saudade, em 1900. Em 1912, deu a lume seu livro único de poemas, o mítico Eu.
Após sua morte, seu amigo Órris Soares (tio paterno do dublê de entrevistador e humorista Jô Soares) organizaria uma edição chamada Eu e Outras Poesias, incluindo poemas até então não publicados pelo autor. Até hoje seu livro esgota-se com facilidade, e nem sei mais quantas edições do Eu e Outras Poesias foram esgotados por sucessivas gerações de leitores. Daqui a 500 anos, alguém escreverá o mesmo.
Augusto dos Anjos é um poeta controverso que não é irregular; é um autor inclassificável. Todavia, não  o pensem fora de seu tempo. Ele tem tantas faces que poderia ter ultrapassado várias décadas de leitura, estudo e produção e, no entanto, não passou do trigésimo primeiro aniversário. Baudelaire via poesia nas coisas consideradas feias ou antipoéticas, como o satanismo e certos traços da vida urbana: a sujeira, a miséria, a prostituição, os bêbados desocupados nas tavernas, etc.
Além disso, o poeta francês rompeu com a psicologização do eu-lírico dos poemas, na busca de uma abordagem mais impessoal, centrada na própria linguagem dos textos. E é nesse ponto de conteúdo e forma que encontramos uma proximidade da poesia de Augusto dos Anjos com a poética de Baudelaire.
Para que se possa falar de influência na poesia de Augusto dos Anjos, é preciso também evocar o filosofo alemão Schopenhauer. As teorias do filósofo germânico estão tão entranhadas na cultura ocidental que se fundem com os hábitos de pensar e sentir de europeus e americanos.
O aspecto melancólico da poesia de Augusto, característica imediatamente captada pelo leitor que não esteja lendo com a cabeça em Plutão, é interpretada de diversas maneiras. Uma vertente de críticos, entre os quais destaca-se o  já citado Ferreira Gullar, fundamenta a melancolia da obra na biografia do homem Augusto dos Anjos.
Para Gullar, as condições de nossa cultura dependente dificultam uma expressão literária como a de Augusto dos Anjos, onde se observa um rompimento com a imitação extemporânea da literatura européia.
Essa ruptura de Augusto dos Anjos ter-se-ia dado menos por uma crítica à literatura do que por uma visão existencial, fruto de sua experiência pessoal e temperamento, que tentou expressar na forma de poesia.
A poesia de Augusto dos Anjos, conforme o grande Ferreira Gullar, ostenta lampejos altíssimos do que seria chamado de modernismo: vocabulário prosaico misturado a termos poéticos e científicos; demonstração dos sentimentos e dos fenômenos não através de signos abstratos, mas de objetos e ações cotidianas; a adjetivação e situações inusitadas, que transmitem uma sensação de perplexidade.
O poeta versejou entre 1900 a 1914. O modernismo estourou nestas bandas em 1922.  Gullar compara – oportunamente – a miscigenação de vocabulário popular com termos eruditos empregados pelo poeta ao mesmo uso que fez Graciliano Ramos em sua prosa seca. coloquial e clássica.
O poeta maranhaense descreve ainda os recursos estilísticos pelos quais Augusto dos Anjos tematiza a morte, que é personagem central de sua poesia, e o compara a João Cabral de Melo Neto, para quem a morte é apresentada de forma crua e natural.
Nesse caso, pode ser comparado com Mallarmé, pelas crises espirituais porque ambos passaram, na impotência de estabelecer relação entre o mundo visível e o invisível, com o objetivo de atingir, através da sensação, a idéia pura das coisas. Com Antero do Quental, pela tortura do espírito e pela constância do tema da morte, desejada por um, temida pelo outro.
Tenho que Augusto sabia que a sua posição solitária na quadra da língua portuguesa seria um fato eternamente consumado; sem companheiros de geração, à margem das patotas, penso que não houve ironia quando ele escreveu sobre si como “o poeta do hediondo.”
Foi exatamente com esse título — Poeta do Hediondo — que ele, num dos seus últimos sonetos, deu a resposta por antecipação aos seus futuros críticos.
Ler Augusto é transitar do Romantismo ao Modernismo, passando por todas as correntes estéticas intermediárias. É um poeta que conseguiu colocar em verso, e em uma única obra, a essência de tendências as mais díspares, sem ser hermético nem incompreensível.
Olavo Bilac, nosso maior poeta parnasiano, logicamente prezava com fervor a imposição da beleza da forma na arte poética, e diga-se, sem prejuízo total do lirismo. Embora Augusto dos Anjos mostrasse grande habilidade formal, a abordagem que dava a seus temas eram diametralmente opostas à arte parnasiana.
O próprio poeta assumiu essa sua iconoclastia no soneto Vandalismo (belíssimo, aliás):
“Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos…
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos”
E, aqui uma verídica passagem de nossas letras.  Passagem ou episódio preservados pelo tempo, que nesse caso, cuidou em provocar uma mancha no currículo de Olavo Bilac. É um fato verídico e documentado oficialmente em nossa história literária: um evento que deixou uma mancha na biografia de Bilac, conforme o relatado por Manuel Bandeira:
“Dias depois de sua morte, ocorrida em Leopoldina, Órris Soares e Heitor Lima caminhavam pela Avenida Central e pararam na porta da Casa Lopes Fernandes para cumprimentar Olavo Bilac. O príncipe dos poetas notou a tristeza dos dois amigos, que acabaram de receber a notícia. – E quem é esse Augusto dos Anjos – perguntou. Diante do espanto de seus interlocutores, Bilac insistiu: Grande poeta? Não o conheço. Nunca ouvi falar nesse nome. Sabem alguma coisa dele? Heitor Lima recitou o soneto Versos a um coveiro. Bilac ouviu pacientemente, sem interrompê-lo. E, depois que o amigo terminou o último verso, sentenciou com um sorriso de superioridade: – Era esse o poeta? Ah!, então, fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa.”
Bilac, do alto dos sonetos da sua “Via-Láctea” estava redondamente enganado. Perdemos um poeta único, singular e universal.
Hoje, Augusto dos Anjos é mais lido, admirado e estudado do que o pomposo poeta do “ora direis ouvir estrelas…”

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